Descrição
É com imensa alegria que apresento à comunidade jurídica o livro escrito por Bruna Bier da Silva, decorrente da sua dissertação de mestrado – intitulada “O Devido Processo Legal Coletivo de Massa apesar da Cultura Jurídica do Autointeresse” – defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da prestigiada Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. A dissertação, que foi orientada pelo caríssimo amigo e respeitado professor Marco Félix Jobim, foi defendida em banca da qual tive a honra de participar, juntamente com os professores Caroline Vaz e Diógenes Hassan Ribeiro. E naquele momento tive a alegria de conhecer o talento e a profundidade da autora do livro ora apresentado.
Àquele que iniciar agora a leitura do livro, penso que sobressairá, desde logo, a profundidade da pesquisa e a originalidade das ideias sustentadas. Ainda que por caminhos distintos daqueles que venho utilizando, a autora consegue tocar o objetivo (a meu ver) essencial da tutela coletiva na atualidade: a necessidade de evitar pensar o processo coletivo segundo as estruturas clássicas do processo individual.
E talvez aqui repouse a grande contribuição da obra em análise. A autora demonstra a visceral influência que o pensamento individual exerceu na formação da cultura jurídica moderna. E demonstra também o quanto esse caldo cultural impactou a formação do pensamento processual atual. Com efeito, a construção das estruturas utilizadas pelo processo coletivo brasileiro foram todas tomadas de empréstimo do processo individual. Basta pensar que ainda se discute, no Brasil, se a atuação dos legitimados coletivos implicaria forma de substituição ou de representação processual – figuras que só têm sentido se pensadas à luz da titularidade individual de direitos e, em particular, do direito de ação. Identicamente, debate-se com afinco o modo de “execução” de uma sentença coletiva e, em particular, sobre a prioridade das execuções individuais sobre a coletiva. Enfim, revisitando os institutos debatidos pela doutrina do processo coletivo, vê-se claramente a força do pensamento individualista sobre sua construção e sua discussão.
No entanto, se essa visão individualista é útil e adequada para pensar o processo civil tradicional, ela é totalmente insuficiente e equivocada para a construção de uma genuína e correta teoria da tutela coletiva. Como bem aponta a autora, “a problemática envolvendo os direitos coletivos em sentido amplo apresenta contornos bastante distintos dos direitos subjetivos atomizados, o que representa maior complexidade em sua resolução em comparação com os direitos individuais clássicos, em especial em razão da necessidade de reelaboração do pensamento jurídico ao qual o operador do direito no Brasil está acostumado”.
Com efeito, talvez aí resida o principal obstáculo para o pleno florescimento da tutela coletiva em sua integralidade. Porque nossa doutrina ainda não está habituada a pensar esse campo sob premissas próprias, a praxe brasileira é comumente levada a oferecer resposta inadequada à legislação coletiva ou aplicação insuficiente aos institutos peculiares do processo coletivo.
É o que se vê, por exemplo, no infindável debate a respeito da vinculatividade de acordos coletivos firmados por apenas um dos colegitimados em relação aos demais. Por mais que a questão seja discutida, não há consenso sobre se aquele legitimado que não participa da celebração do acordo pode (ou não) ajuizar demanda coletiva sobre o mesmo objeto. Isso, obviamente, implica sérios transtornos, que reduzem, dentre outros problemas, significativamente a força que um acordo coletivo pode ter.
Enquanto escrevo esta apresentação, o país também vive o debate judicial – não tão evidente, em razão da primazia da preocupação com a pandemia mundial – a respeito da extensão do art. 16, da Lei da Ação Civil Pública. Depois de anos de discussão sobre seu alcance no Superior Tribunal de Justiça, agora o Supremo Tribunal Federal aceitou discutir a questão, a fim de determinar se uma ação coletiva deve ter seus efeitos limitados ou não à “competência territorial do órgão prolator”. No caso concreto (RE 1.101.937/SP), ao admitir a repercussão geral da questão, o Min. Alexandre de Moraes entendeu por determinar a suspensão de todos os processos coletivos, no país, em que essa matéria seja discutida. Novamente, ao que parece, a decisão não toma em conta a dimensão coletiva desse tema, nem as consequências práticas dessa ordem. Suspender todos os processos em que se debate o alcance do art. 16, da Lei 7.347/85, é, por via transversa, suspender praticamente todas as ações coletivas em que se veicula direitos individuais homogêneos. Mais do que isso, essa determinação impõe a paralisação de todos os mais importantes processos coletivos sobre direitos individuais de massa (porque de âmbito nacional). Esses processos ficarão suspensos por não se sabe quanto tempo, no aguardo da posição final da Suprema Corte nacional.
Duas perguntas surgem desse caso. A quem interessa essa suspensão? Quais as consequências dessa determinação?
A resposta à primeira indagação é evidente. A suspensão de todos esses processos coletivos só favorece o litigante habitual. É ele que será favorecido pela paralisação, por tempo indeterminado, dos processos coletivos a que se sujeitava. Quanto à segunda pergunta, também a resposta é fácil: essa suspensão estimulará – ainda mais – o ajuizamento de ações individuais, de massa, repetitivas, sobre a mesma matéria, entulhando ainda mais o Poder Judiciário com essas causas que nunca deveriam ali estar.
Logicamente, é compreensível a postura do Judiciário. Acostumado que está a lidar com as controvérsias como se todas elas fossem questões individuais – a serem tratadas também individualmente na via judicial – soa-lhe estranho qualquer comportamento que amplie o campo da tutela coletiva. E, assim, parece que o Judiciário se sente mais confortável em lidar com questões repetitivas de modo individualizado – ainda que por meio de técnicas alienígenas, como o julgamento por amostragem ou o julgamento de casos-piloto, tal como ocorre com os recursos repetitivos ou o IRDR – ao invés de coletivizar a discussão da questão por meio de técnicas adequadamente pensadas para o processo coletivo.
É exatamente por isso que o livro em tela se mostra essencial. Revelar a necessidade de desprendimento do pensamento individual está no âmago do sucesso da tutela coletiva. E esse sucesso, entre outras tantas funções, é imprescindível para a gestão adequada dos casos de massa perante o Judiciário. A seu turno, essa gestão adequada tem também um papel fundamental para a proteção de hipossuficientes e dos consumidores, diante de seu caráter dissuasório em relação a comportamentos ilícitos de massa.
Por outras palavras, a dificuldade da doutrina e da praxe brasileiras em compreender, com o pensamento correto, os institutos do processo coletivo faz com que disseminem comportamentos abusivos de litigantes habituais. Parece estranho supor que essa (aparentemente pequena) dificuldade processual gere consequências tão nefastas para a sociedade em geral. No entanto, essa percepção é evidente quando se nota as vantagens que o litigante habitual tem nas demandas individuais. Aliás, não é por outra razão que os litigantes habituais são a principal fonte de resistência à implementação de mecanismos de tutela coletiva, valendo recordar que um deles (uma instituição financeira) é o recorrente do RE 1.101937/SP, antes referido).
Em síntese, a obra em análise constitui referência imprescindível para qualquer um que queira, seriamente, estudar o processo coletivo. Para qualquer um que não se veja limitado a repetir aquilo que tantos outros já disseram – e que levou ao fracasso da tutela coletiva no Brasil – e que deseje contribuir para a formação de um pensamento coletivo novo, arejado e comprometido com a proteção da sociedade, é indeclinável compreender a necessidade de superar a mentalidade individual, inserindo-se em nova forma de pensar.
Por isso, tenho grande alegria em apresentar este livro e em ter acompanhado a defesa das ideias aqui contidas por sua autora, na sua arguição de mestrado.
Tenho convicção de que a ampla pesquisa realizada e as ideias amplamente desenvolvidas são e serão um marco para a evolução do processo coletivo, tão necessária no ordenamento brasileiro. Espero que a obra receba do público a mesma acolhida efusiva que recebeu a dissertação de mestrado da banca examinadora.
Oxalá possamos, com mais essa importante contribuição, caminhar para a construção de um processo mais adequado, efetivo e tempestivo, capaz de atender aos anseios sociais e de trazer Justiça a quem dela precisa.
Curitiba, outono de 2020.
Sérgio Cruz Arenhart
Pós-doutor pela Università degli Studi di Firenze.
Professor dos cursos de Graduação e Pós-graduação na Universidade Federal do Paraná UFPR.
Procurador Regional da República.