Descrição
Há certas questões que não podem ser esquecidas quando se lê, quando se estuda uma obra. Uma delas é o lugar de fala: o que autor quer responder com a obra? Ou, mais ainda, o que autor quer perguntar com a obra? Para compreender um livro, precisamos saber ouvir as reflexões às quais ele se propõe. Deixemos que o texto fale. Um novo paradigma: pós-positivismo e/ou neoconstitucionalismo , de Antonio Cavalcanti Maia, aborda, de forma sofisticada, dois temas de extrema relevância no paradigma da contemporaneidade; justamente, aquilo a que se convencionou chamar de pós-positivismo e neoconstitucionalismo. Cavalcanti Maia, erudito professor do Rio de Janeiro, baseado em um sólido arcabouço teórico, reflete sobre o fenômeno do neoconstitucionalismo e pretende reconstruí-lo, reforma-lo, sob uma ótica garantista. É esse o local de fala do professor Cavalcanti Maia. Como Cavalcanti Maia menciona, e muito bem, sou um ácido crítico do neoconstitucionalismo, ao menos àquilo que no Brasil tem se dito ser o neconsontitucionalismo . Maia e eu temos algumas divergências. Enquanto ele pretende (re)compreender a tradição neoconstitucionalista a partir de olhares garantistas, a Crítica Hermenêutica do Direito matriz teórica que fundei e venho desenvolvendo já de há muito sustenta a necessidade daquilo a que chamo de Constitucionalismo Contemporâneo. Penso que o neoconstitucionalismo, como tal ao acreditar em ponderação e discricionarismos, corre o risco de ficar limitado e superar tão somente o positivismo clássico, exegético (legalista). Neste caso, o problema dos princípios pode acabar restrita a valores, sem a devida normatividade que lhes empresta um autor como Dworkin. Concordo com o próprio Ferrajoli, trabalhado por Cavalcanti Maia, quando este aponta um caráter, de certa forma, antidemocrático subjacente ao neoconstitucionalismo, porque incapaz de superar posturas subjetivistas/voluntaristas. De todo modo, desacordo(s) à parte, lembremos o que disse ao início desta reflexão: antes de tudo, é preciso que se compreenda o lugar de fala de toda obra, de toda matriz teórica. Na bela obra de Cavalcanti Maia, é possível encontrar, por trás do(s) desacordo(s) que temos, uma série de pontos de convergência entre as bases teorético-filosóficas de minha Crítica Hermenêutica e as de Um novo paradigma: pós-positivismo e/ou neoconstitucionalismo . Cavalcanti Maia, como eu, tem o garantismo como uma prioridade. Essa questão assume maior relevância, ainda, se levarmos em conta um país como o Brasil, em que ainda se inverte o ônus da prova e o judiciário é useiro e vezeiro em fazer superinterpretações. O garantismo, em países como o Brasil, é condição de possibilidade para a própria democracia. Assim, só a aposta no garantismo já aumentaria o valor epistêmico de face do livro de Cavalcanti Maia. demais, sua proposta de (re)leitura/(re)construção do neoconstitucionalismo parte de uma premissa comum à minha crítica: a de que não se pode mais fazer e falar em Direito, hoje, de forma apartada da democracia. Hoje, Direito, da forma como se deve falar em Direito, é Direito democrático. É dizer, talvez discordemos na resposta, mas temos uma pergunta comum: como compreender, e como construir uma teoria adequada à democracia? Ao final, é isso que importa. Não é de agora que eu me preocupo com a necessidade de uma definição clara que responda adequadamente qual é (e qual deve ser) o autêntico papel da doutrina. Se, hoje, o Constitucionalismo Contemporâneo (ou, como queira, a proposta de Cavalcanti Maia sobre um novo neoconstitucionalismo) pressupõe democracia, não é mais possível que nos contentemos com uma doutrina subserviente, isto é, com uma doutrina que não doutrina e que se contenta em reproduzir e glosar decisões judiciais. Com efeito, a filosofia já tem mostrado que a pretensão meramente analítica e descritiva do Direito é uma empreitada fadada ao fracasso: o paradigma hermenêutico implode a velha dicotomia fato/valor. Eis aí, pois, mais um ponto de encontro: Um novo paradigma: pós-positivismo e/ou neoconstitucionalismo , não é uma obra complacente. É uma obra corajosa, que se propõe a dizer como as coisas devem ser para que o constitucionalismo seja verdadeiramente democrático. Entre acordos e desacordos, é assim que se constrói democracia. É essa nossa tarefa, é esse nosso lugar de fala. Uma excelente leitura! Por Lenio Luiz Streck.